terça-feira, 30 de junho de 2009

Autofagia



Se queres mesmo saber, ainda te trago comigo. E ainda seguro tuas mãos quando tenho medo do futuro, e surges intenso e forte a cada momento inglório, e me dizes coisas doces, e acaricias meu rosto, e me tomas nos braços como se fosses ficar. Se queres saber de verdade, o que mais me faz falta não são tuas formas e curvas, os beijos e as carícias, nem são as noites de amor. O que mais me agonia é passar os dias sem o cheiro do teu pescoço, a umidade dos teus cabelos pousados sob minhas mãos, teus olhos marejados, o tom da tua voz dizendo que vinhas, a delicadeza dos gestos, o ritmo no caminhar ao chegar ou ao partir. O que desejo de volta não são teus líquidos e sumos, teus quandos e comos, teus nãos e porquês. Nem tua língua e tuas mãos percorrendo caminhos que me ensinastes a trilhar. O que guardo em mim é o garoto pequeno e frágil, de olhos firmes e sinceros, de toque leve e voz serena, o etéreo amigo, o porto seguro, a pousada certa pra onde me habituei a voltar. O de ti que não partiu jaz em mim e me dá de comer e beber sempre que, exausta, penso que não posso mais.

Catarse

Alyssa Monks - morning after, 30 x 50 - oil on linen, 2004
Ela acordou sem saber que horas eram. E não pensou no relógio, nem que precisaria partir. Trazia nos braços apenas a sensação de pertencer àquela de si que sonhara, tempo suspenso no espaço de odores, sabores, sensações e desejos satisfeitos. Pousou o queixo sobre a mão estendida, ainda trêmula, pra perceber com surpresa: ele ainda estava ali. Vestiu a camisa amassada de abraços, acendeu um cigarro e sentou-se na poltrona aos pés da cama. Contemplação. Quanto de sua essência depositara sob aqueles olhos? Quanto de força investira, advogando o direito de acreditar no amor? Perguntas não respondidas pairavam na fumaça enquanto ele dormia. Sentia-se inalcançável, e o mundo já não tinha a menor relevância. A sofreguidão de ontem dera lugar a uma quietação com a qual, estranhamente, já não se identificava mais. Como se tocasse nuvens, decidiu apenas ter consigo a plenitude do momento doce, o silêncio, a euforia lúcida, a aura da liberdade que quase podia tocar. Mal sabia que aquelas imagens seriam um relicário da memória, tempos depois, quando precisaria abandonar a si mesma sem a paz, sem o cheiro, sem os meios tons.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Segredo

Não tenho os créditos da imagem! Quem souber, por favor, informe!


E que o tempo passe, e que os sinos dobrem e que os invernos assombrem e que as primaveras inspirem, que as dores calem, que as pessoas se afastem, que as violetas murchem e que inventem dúvidas atrozes sobre mim. Meu tesouro escondido é singelo, leve, sutil. E haverá sempre um quinto motivo da rosa, uma caixa azul guardada em segredo com as sensações intactas daquela manhã de surpresas, a doce lembrança de olhares, os pedidos sussurrados na praça, a rosa vermelha nos cabelos molhados, toque de anjo nos lábios e olhares preguiçosos entre carinhos assim que nutridos os caprichos do amor. Cartões de aniversário, beijos suaves no escuro, telefonemas trocados à distância sem trégua, reencontros inesquecíveis, pedidos de "para sempre", um sim que quase foi dito. A lágrima guardada. Congelamento do porvir. Tudo em você me pertence nesta medida. Não há antídotos contra lembrança do que poderia ter sido. E mesmo cortando tempo, enganando dores, acariciando monstros, acalentando flores, alimentando esperanças, trarei no peito a marca indelével do eterno possível na memória. Secreta, vertiginosa, silenciosamente.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Amnésia

Foto: António Amen


Quereria reinaugurar-me. Despertar tendo nos olhos a doçura do jamais visto, a ansiedade das estréias, a ternura do toque, a reverência da primeira vez. Amanhecer com o peito nu de lembranças e dores, de amores vividos, da dura palavra proferida no momento de fúria. Esquecer a acusação que minou minhas forças, a perda do amor para sempre, aquele olhar de adeus, todas as suas faltas. Ter finalmente mãos sem vestígios de texturas, temperaturas, suores, tremores e as unhas por fazer, as palmas sem calos, sem linhas percorridas da vida ou do coração. A boca permeada de desconhecimentos, limpidez e pudores. No meu corpo, nenhuma impressão marcada, nenhum toque, nenhum arrepio, nenhuma dor. Às vezes isso realmente me ocorre. Mas quando abro os olhos realizo que sem essas marcas na alma e calos nas mãos, sem essas fendas no peito e abismos na alma, sem o sal das lágrimas sentidas, sem os pôres e nasceres do sol escondidas sob a íris, sem os mergulhos no rio da infância, sem as queimaduras de terceiro grau na pele, sem os dramas inventados, sem as felicidades infinitas e as agruras eternas, sem os meus grandes amigos e os inimigos íntimos, sem as vitórias e derrotas, sem os fracassos atrozes, sem as palavras hostis e as deliciosas melodias de amor, sem o caminho tomado, não seria eu. Despertencer ao meu próprio mundo, tomar atalho por estrada, fazer pretensas escolhas certas em pseudo-momentos exatos, me esvaziaria de mim. E sem as lembranças de ontem, encararia ignorantemente a infertilidade pousada no ventre do misterioso amanhã que me aguarda.

terça-feira, 16 de junho de 2009

silêncio

Ultimamente quando está fazendo muito barulho em mim, eu me calo.
Sorry.