segunda-feira, 22 de junho de 2009

Amnésia

Foto: António Amen


Quereria reinaugurar-me. Despertar tendo nos olhos a doçura do jamais visto, a ansiedade das estréias, a ternura do toque, a reverência da primeira vez. Amanhecer com o peito nu de lembranças e dores, de amores vividos, da dura palavra proferida no momento de fúria. Esquecer a acusação que minou minhas forças, a perda do amor para sempre, aquele olhar de adeus, todas as suas faltas. Ter finalmente mãos sem vestígios de texturas, temperaturas, suores, tremores e as unhas por fazer, as palmas sem calos, sem linhas percorridas da vida ou do coração. A boca permeada de desconhecimentos, limpidez e pudores. No meu corpo, nenhuma impressão marcada, nenhum toque, nenhum arrepio, nenhuma dor. Às vezes isso realmente me ocorre. Mas quando abro os olhos realizo que sem essas marcas na alma e calos nas mãos, sem essas fendas no peito e abismos na alma, sem o sal das lágrimas sentidas, sem os pôres e nasceres do sol escondidas sob a íris, sem os mergulhos no rio da infância, sem as queimaduras de terceiro grau na pele, sem os dramas inventados, sem as felicidades infinitas e as agruras eternas, sem os meus grandes amigos e os inimigos íntimos, sem as vitórias e derrotas, sem os fracassos atrozes, sem as palavras hostis e as deliciosas melodias de amor, sem o caminho tomado, não seria eu. Despertencer ao meu próprio mundo, tomar atalho por estrada, fazer pretensas escolhas certas em pseudo-momentos exatos, me esvaziaria de mim. E sem as lembranças de ontem, encararia ignorantemente a infertilidade pousada no ventre do misterioso amanhã que me aguarda.

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